sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

O QUE SOU EU, O QUE É DEPRESSÃO?


I hurt mysef today
To see if I still feel
I focus on the pain
The only thing was real

Johnny Cash


Por diversas vezes numa mesma semana, parece que minha vida não tem mais jeito, nada mais vai dar certo. Horas ou dias depois, uma fagulha de esperança me leva a tocar diversos projetos simultaneamente.


Tem dias que me sinto um traste, o pior dos piores, um inútil que serve apenas como aviso aos demais. Noutros, percebo em mim até algum talento que poderia ser lapidado.

Às vezes “sei” que vou acabar minha vida como um morador de rua, num banco de praça. Em seguida, como um príncipe que jamais perde a realeza, me pego analisando possibilidades futuras.

Meu casamento parece já ter terminado e, como um morto vivo, continua em pé apenas para devorar nosso cérebro. Tenho certeza de que minha esposa está não só farta de mim, mas me odeia. Em seguida, como saído de um pesadelo, tudo parece caminhar às maravilhas, com abraços, beijos e presentes.

Falta memória e esqueço compromissos, nomes, algo que me contaram pouco tempo atrás. E me lembro de coisas que ninguém mais se lembra, letras de músicas, cenas de filmes, pequenos detalhes que muitos nem haviam percebido.

Faço compras de supermercado, levo as cachorrinhas passear, vou ao banco, levo o sobrinho na escola, passo na locadora de filmes, na padaria, vou buscar um vaso novo para o jardim, vou ao banco, ao correio, pego o sobrinho na escola, levo as cachorrinhas ao petshop para o banho... Tudo no mesmo dia ou no seguinte ao que sentia total falta energia para sair da cama ou para levantar do sofá para ir dormir.

Uma angústia inexplicável dá lugar a uma paz extraordinária, uma tristeza que até dói é substituída por um vago sentimento de harmonia, o humor azedo e pessimista é trocado por outro, leve e alegre.

E eu me pergunto o tempo todo: eu sou assim? Será que sempre fui assim e não percebia? Ou é a depressão que faz com que meu comportamento seja uma montanha russa? Ou é efeito da medicação lutando contra a depressão dentro de meu cérebro?

Até onde, nesses picos e abismos, estou “eu” ou está a depressão?

Devo assumir esses momentos díspares como minha personalidade ou desculpar-me por estar passando por um TDM? Ou não é mais possível desamalgamar um do outro, tendo eu então tornado-me isso que sou hoje? Digo aos colegas que sou assim mesmo, esquecido, ou desculpo-me usando a depressão como culpada por ter deixado passar um compromisso, aniversário ou outro qualquer?

Acho que nunca vou saber.

sábado, 5 de dezembro de 2009

DEPRESSÃO - O MELHOR REMÉDIO


Pesquisa é o processo de entrar em vielas para ver se elas são becos sem saída.
Marston Bates


Eu tenho uma pequena coleção de textos sobre o tema desse blog e só agora me lembrei de compartilhar com você que vem até aqui ler meus posts.

Talvez você já os conheça, mas acredito que possam ser úteis a alguém que passa pelo mesmo que passamos.

Procurei artigos que considerei ou me pareciam "sérios". Portanto não encontrará aqui aquelas pérolas sobre "a cura" da depressão, nem apresentações ppt com bebês sorrindo, cães dormindo ou crendices diversas.

Estão ali, coluna à direita. Se tiver conhecimento de algum bom artigo, comparti-lhe.

Eu acredito que o melhor remédio para a depressão é conhecê-la, entendê-la, saber como nos afeta, porque nos afeta. Não que isso vá curar-me, mas faz com que eu me sinta menos mal. Experimente e me conte depois.

Ah, mais uma coisa: algumas pessoas tem feito comentários aqui no Crônicas e eu gostaria de respondê-los ou comentá-los, mas não consigo se os deixam como "anonimous". Acho que se se identificassem o blog ficaria mais dinâmico, uma troca de experiências, uma conversa entre iguais.

É isso aí.

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

FIZ NADA...

"...Será que o Diabo fez o mundo enquanto Deus dormia?..."
Tom Waits


Era final de 2006, mais exatamente 20 de dezembro, quando fui demitido da empresa onde trabalhava desde apenas janeiro do mesmo ano.

Não foi algo unilateral nem inesperado. Era um publicitário tentando atuar como técnico atuarial numa empresa de planos de saúde. Não podia dar certo mesmo. Falei com os superiores, pedi que me mudassem de área, mas havia empecilhos salariais e políticos. Resultado: rua.

Mas eu já vinha apresentando há mais de dois anos um comportamento definido por colegas como sorumbático. Acho que tudo começou a degringolar dois anos antes, na empresa em que trabalhei antes dessa em que fui demitido. Nela eu percebi que era o patinho feio, um peixe fora d’água, pois já estava longe de meu habitat natural. Era uma empresa de seguros, cheia de administradores, advogados, matemáticos, técnicos atuariais. Terreno hostil para um publicitário.

No tal fatídico mês de dezembro eu sentia dores terríveis nas costas, tive de ficar uma semana em repouso, faltando do trabalho. Pouco antes disso, peguei uma gripe como nunca havia tido até então. Também faltei uns dias do trabalho. Trabalhei quase nada neste mês.

Assim, entrei em 2007 deprimido, desempregado e sem um plano B. Que tivesse! A tormenta mental que o estado depressivo causa me impossibilitaria de enxergar possibilidades, oportunidades, planejar qualquer coisa teria sido extremamente penoso.

A depressão tomou conta de meu espírito, de minha alma, de minha mente, de meu corpo.

No supermercado, por duas vezes, ao ver aposentados e pessoas idosas fazendo suas compras à minha volta senti as trevas me abraçarem, o carrinho parecia pesar uma tonelada apesar de ainda vazio e tudo o que eu queria era que apagassem a luz para que eu pudesse deitar e ficar ali, no chão, no escuro, no silêncio, para sempre. Com dificuldade para respirar e a força da gravidade elevada à milésima potência sobre meus ombros, o esforço para continuar a empurrar o carrinho, fazer as compras e me comportar como uma pessoa normal, sã, quase me levou às lágrimas, o que me faria sentir ainda mais ridículo.

Em outras duas ou três situações, indo a algum compromisso, desisti no meio do caminho tamanha era minha inexplicável aflição. Faltava ar, a cabeça girava, confusa. Eu parava o carro em ruas escuras, deitava o banco, fechava os vidros, os olhos e ficava por horas em silêncio. Só voltava pra casa quando era mais ou menos a hora em que deveria chegar, evitando explicações por chegar cedo.

Por diversas vezes a agonia era tão sufocante que pensei em sumir, largar tudo, sair pelo mundo deixando essa vida para trás, mais ou menos como o garoto de Natureza Selvagem. Estive muito, muito perto de fazer isso.Acho que se fosse mais jovem teria feito, mas os anos vividos trouxeram mais que duas hérnias de disco... Sabia que essas crises passavam e a idéia ia embora, temporariamente.

Mesmo assim, num esforço hercúleo, comecei a prestar pequenos serviços de marketing. Fiz um folder aqui, um folheto ali, criei um logotipo acolá.

- diagramei livro de normas da Agência Nacional de Saúde;
- criei logotipo para uma consultoria jurídica, além de cartão de visita e papel carta;
- o mesmo para uma consultoria de seguros;
- criei logotipo para empresa do marido de uma ex-colega;
- produzi um folder e apresentação ppt para uma empresa de tecnologia do marido de outra colega;
- prestei serviços de marketing à fábrica de meu pai, criando folhetos, web site, rótulos...;
- acabei indo trabalhar na fábrica, viajando 220km três vezes por semana para ir e voltar;
- ilustrei meu primeiro livro, escrito há uma década;
- escrevi e comecei a ilustrar o segundo;
- escrevi o terceiro;
- mantive ativo o blog Pausa prum Café, com alguns textos bastante elogiados pelos poucos que o visitam;
- comecei e mantive outro blog, o Crônicas de um Deprimido Crônico, que tem até seguidores;
- escrevi textos diversos e distribuí em vários sites na web;
- participei de concurso de criação de mascote para web site vegetariano;
- tentei a idéia de produzir camisetas focando os direitos animais e posse responsável;
- comecei a prestar serviço a duas novas corretoras, criando folder, folhetos, mala-direta, peças promocionais/institucionais...
- aprendi, me virando sozinho e tateando no escuro, a mexer com softwares profissionais como Photoshop, Painter, Dreamweaver, Publisher;
- tornei-me um “faz-tudo” em casa, troquei todas as tomadas e interruptores, luminárias, mudei móveis de lugar, montei móveis novos...

...E algumas outras coisas que não me lembro agora.

Nesse meio tempo, cursei um MBA em marketing e meu TCC foi a melhor nota da classe, fiz religiosamente as compras semanais em supermercado sem esquecer das pequenas urgências resolvidas no varejão ou padarias e encomendas de congelados.

Passeei diariamente, chovesse ou fizesse sol escaldante, com minhas duas cachorrinhas, além de levá-las pontualmente ao seu banho semanal em pet shop e manter a higiene em casa quando a coisa desanda, principalmente depois que adotamos duas felinas.

Mantive as contas pagas dentro de seus prazos.

Li, por baixo, dúzia e meia de livros, boa parte deles sobre depressão, ceticismo em relação à fé e religião, ética, direitos animais e uns poucos de humor.

Não consegui arrumar emprego, parei de tentar e essas minhas atividades profissionais, desenvolvidas num pequeno home Office que montei num quarto, me renderam pouco ou nenhum dinheiro, pois meus clientes são colegas com suas empresas iniciando atividades, ou seja, sem faturamento. Ficou a promessa de que um dia me pagam.

Na pior das hipóteses, aprendi muito e mantive a cabeça ocupada e produtiva.

Aí, três anos depois, agora sentindo que o fundo do poço está um pouco mais longe lá em baixo, minha mulher reclama:

- Pô, você fica aí sem fazer nada!...

segunda-feira, 30 de novembro de 2009

AUTO-AJUDA NÃO AUXILIA QUEM REALMENTE PRECISA


Como é que algo que é vendido a milhões de pessoas pode se chamar "O SEGREDO" ?

eu mesmo


A capa da Veja desta semana apresenta matéria sobre a praga da auto-ajuda, que consome espaço nas prateleiras das livrarias, e provavelmente um monte de gente vai encher o peito pra falar bem desse troço, mais ou menos assim: “Tá vendo? Até saiu na capa da Veja!...” como se isso tivesse algum mérito ou tornasse a coisa séria ou científica.

Então, antes que você vá à livraria mais próxima gastar sua grana e deixar os autores ainda mais milionários, pense mais uma vez...

Repetir frases positivas como "Sou uma pessoa querida" ou "Vou ter sucesso" faz com que algumas pessoas se sintam piores em relação a si mesmas, ao invés de elevar a autoestima, destaca um estudo divulgado nos Estados Unidos.

"Desde pelo menos a publicação do livro de Norman Vincent Peale 'O poder do pensamento positivo' (1952), os meios de comunicação têm estimulado as pessoas a dizer coisas favoráveis sobre si mesmas", afirma o estudo coordenado por psicólogos canadenses, publicado na revista Psychological Science.

O estudo cita uma revista popular de autoajuda que recomenda aos leitores: "Testem recitar: 'Sou poderoso, sou forte e nada neste mundo pode me deter'". Mas o conselho não funciona para todos.

As frases positivas sobre si mesmo fazem com que as pessoas que já se sentem mal em relação a si mesmas não fiquem melhor, e sim pior, conclui o estudo coordenado pelos psicólogos Joanne Wood e John Lee, da Universidade de Waterloo, e Elaine Perunovic, da Universidade de New Brunswick.

No estudo, os especialistas pediram a pessoas com baixa e alta autoestima que repetissem a frase "Sou uma pessoa querida", para em seguida medir os estados de ânimo e os sentimentos dos participantes. Eles detectaram que os indivíduos que começaram o estudo com baixa autoestima se sentiram piores depois de repetir a frase.

"Penso que o que acontece é que quando uma pessoa com baixa autoestima repete pensamentos positivos, provavelmente tem pensamentos contraditórios", declarou Wood à AFP.

"Portanto, se afirmam 'Sou uma pessoa querida', podem estar pensando 'Bem, nem sempre sou querido' ou 'Não sou querido neste sentido' e estes pensamentos contraditórios podem fazer transbordar os pensamentos positivos", explicou.

Apesar dos pensamentos positivos parecerem efetivos quando integram uma terapia mais amplia, sozinhos tendem a reverter o efeito que supostamente devem ter, segundo Wood.
O psicólogo afirma que os livros, revistas e programas de TV de autoajuda devem para de dizer às pessoas que apenas a repretição de um mantra positivo levantará a autoestima. "É frustrante para as pessoas quando tentam e não funciona".

Os psicólogos sugerem que pensamentos positivos fora da realidade, como “eu me aceito completamente”, podem causar pensamentos contraditórios em pessoas com a auto-estima baixa. Estes pensamentos negativos podem, assim, sobrepor os pensamentos positivos.

Os pesquisadores concluem no estudo que “A repetição de frases auto-afirmativas podem beneficiar algumas pessoas, mas produzem efeitos negativos naquelas pessoas que mais precisam do benefício”. [Science Daily]

ONDE OS TRISTES NÃO TEM VEZ



Monstros são reais e fantasmas são reais também.
Vivem dentro de nós e, às vezes, vencem"

Stephen King


Alguém chega e conta, em tom elogioso, como fulano é forte, como parece que ele está bem e sorrindo apesar da enorme cirurgia pela qual passou, está pra cima, alto astral...


Poucos dias antes, outra pessoa me conta como beltrano é um cara positivo, pois passou por uma químio violenta para enfrentar seu câncer, chegou a prever poucas semana de vida, mas sempre de bom humor, nunca deixou a bola cair e agora está aí, feliz...

Essa é uma das maiores perversidades da depressão: sobre sua doença não há nada visível e palpável em você, nada que mostre aos demais o quanto você está sofrendo, nenhuma cicatriz, nenhuma bereba, quase nada diferente em sua aparência denuncia quanta dor emocional, quanta agonia espiritual, quanta angústia existencial, quanta dificuldade nas menores coisas você está sentindo.

Pelo contrário: as pessoas percebem apenas a superfície e logo tratam de julgá-lo um lerdo, um boçal de ânimo azedo, um vagabundo que não levanta do sofá pra nada, alguém que está de frescura.

Não é questão de receber cafuné – o que seria ótimo – nem confetes, nem que sejam totalmente complacentes com você e fiquem dizendo o tempo todo “coitadinho, coitadinho”, mas que reconheçam que algo não está bem com você e tentem, ao menos tentem tratá-lo adequadamente e não o acusem jocosamente de estar fazendo manha, se escondendo. Isso só aumenta a culpa que persegue o deprimido.

Oras, dirão, mas fulano teve câncer e fez uma quimioterapia que quase o deixou um lixo e fizeram um corte “desse tamanho” em beltrano e nenhum deles ficou aí desanimado, pra baixo, macambúzio. Nenhum deles fez esse tipo sofredor como você...

Mas cânceres e cirurgias, por mais horríveis que sejam, são problemas que podem levar qualquer um à depressão e a um comportamento tristonho, sorumbático, mas não necessariamente. Nesses casos, os problemas podem levar à tristeza, mas no caso da depressão é o contrário: é a tristeza que se instala, a tristeza É a doença, e, muitas vezes, não há aparentemente – apenas superficial e aparentemente - nada que a cause, nenhum corte, nenhum tratamento que faça cair seus cabelos. A tristeza profunda é o problema em si.

É ela que causa a lentidão, as dores inespecíficas por todo o corpo, a dificuldade em dar um passo e muitas vezes um sorriso, a vontade de ficar na cama, a torcida por amanhecer chovendo.

Mas ninguém parece entender isso. Não entendem também que os heróicos que passaram por cânceres e cirurgias com um sorriso sofreram sim, mas somente para si mesmos, talvez por acreditar que negando a situação em que estavam ela passaria mais rápido ou não a sentiriam tanto, talvez com vergonha de parecer um coitado para as pessoas. Mas eles sofreram sim, e muito, só não precisaram que ninguém fizesse algum mínimo esforço para entender pelo que estavam passando.

Já até briguei com familiares. Se não compreendem meu problema, leiam, estudem, demonstrem algum interesse. Há excelentes artigos na web.

Aí alguém lembra que, dia desses, leu alguma coisa sobre florais para gente deprimida...

E depois não sabem por que deprimidos se afastam das pessoas.

O link abaixo leva a um teste rápido para ver como anda sua deprê. Não sei de sua validade científica, mas aí vai:
http://depressao.sites.uol.com.br/

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

O MARTELO QUE QUERIA SER... MARTELO!



HÁ MUITAS FRASES ENGRANDECEDORAS SOBRE O FRACASSO. TODOS OS QUE AS PROFEREM SÃO VENCEDORES E ASSIM É FÁCIL, É COMO DIZER QUE DINHEIRO NÃO É TUDO QUANDO SE TEM O SUFICIENTE. ONDE ESTÃO AS FRASES DOS FRACASSADOS SOBRE O FRACASSO?
Eu mesmo



Eu conheci o Martelo.

Não, você não leu errado nem eu digitei errado. Martelo mesmo, com “t”.

O conheci ainda pequeno. Seu grande ídolo era Mjolnir, o martelo mágico de Thor, deus do trovão. Invencível, indestrutível, quantas batalhas, quantas aventuras Mjolnir vivia nos gibis que Martelo devorava nas tardes de outono.

Quando não imitávamos as aventuras do martelo mágico brincávamos quase sempre de
oficina. Esse era o seu sonho, um tanto quanto mais pé no chão.

Ao final de sua adolescência tornara-se um autêntico martelo unha 30 onças, com cabeça de aço e cabo de Madeira de Lei envernizada. Ele tinha um quase indisfarçável orgulho disso.

Era então hora de deixar os gibis de lado e ganhar dinheiro, procurar um emprego de... Martelo, oras! O que mais?!

Fez uma lista de marcenarias e oficinas, lustrou-se todo e foi à luta.

Não havia vaga na primeira marcenaria. Na segunda ficaram com seu currículo e disseram que entrariam em contato caso surgisse uma posição. Nas oficinas que visitou até conseguiu ser entrevistado numa e noutra, mas nada de emprego.

Isso se repetiu várias vezes. Muitas vezes.

Começou a ficar desanimado e assustado pois precisava, como todo mundo, ganhar seu próprio sustento. Sem falar na delicada situação de estar sem trabalho, principalmente em reuniões sociais quando lhe perguntavam “o que anda fazendo?”, “onde está trabalhando?”.

Apelou para carpintarias, mas também não teve sucesso.

Estava cansado da rotina de ler os classificados nos jornais, de mandar currículos pelo correio, por e-mail e de se cadastrar em todos os sites de empregos quando surgiu uma oportunidade e o chamaram. Era uma vaga de chave de fenda. Espantado e assustado com o convite, foi aconselhar-se com amigos e parentes.

Concordaram que não era o ideal, mas ele não podia perseguir um ideal para sempre, tinha de se ajustar. Não precisa ser fatalista, falavam. Só por que nascera martelo não significava que não poderia aprender outras atividades. Na pior das hipóteses, ao invés de especialista seria um generalista com experiências variadas, tão procurados à época.

Ponderou. Não queria mais aquela rotina de desempregado e aceitou.

No início seus companheiros de marcenaria davam-lhe um desconto por seus trabalhos meio mal feitos. Afinal, era seu primeiro emprego. Mas depois de um tempo foi ficando claro que aquele serviço não era para ele. Seus colegas lançavam olhares estranhos e não demorou muito a ouvir conversas de corredor sobre como era incompetente. Pediu demissão e voltou à luta por seu lugar no mundo das marcenarias.

Mas os tempos, como sempre aliás, eram difíceis. Havia a concorrência com os martelos chineses, sempre trabalhando por salários irrisórios, e novas tecnologias que substituíam parte dos trabalhos nas oficinas.

Ele tentou, tentou, tentou até que apareceu uma vaga de serrote.
Caracas! Nem eu acreditaria se não tivesse acompanhado sua estória de perto.

Disseram-lhe que com o tempo ele se adaptaria, não precisava fazer um trabalho “fino”. Bastava separar os pedaços de madeira na marretada mesmo. Como da vez anterior, aceitou para sair da bacia das almas.

A novela se repetiu. Tudo bem no início, os amigos eram complacentes, mas logo, como era um trabalho em cadeia, seu desempenho muito aquém do necessário atrapalhava o resultado final. Voltou a se sentir incompetente, opinião da qual seus colegas, agora ex, partilhavam. Isolou-se no canto da marcenaria fazendo seu trabalho quase que se desculpando. O chefe já não lhe passava muito trabalho. Foi, como dizem, posto na geladeira.

O estigma de incompetente instalou-se em sua alma. Já acreditava, e a realidade parecia lhe mostrar isso, que não servia para nada em lugar nenhum. Ficou estressado e o resultado de seu trabalho, que não era bom, ficou pior.
Não tinha mais condições de continuar. Pediu demissão.

Sem emprego novamente e acreditando que não tinha utilidade nesse mundo, caiu em depressão. Acho que já estava deprimido desde lá de trás, mas agora havia caído a última gota no copo d’água, havia sido dado o último sopro na bexiga, havia...

Chega de metáforas. O fato é que, depois de tanto tempo e já com bem mais idade de que quando saiu à procura de emprego pela primeira vez, percebeu que estava meio velho para o mercado de trabalho e não tinha experiência na profissão para a qual nascera.

Teria tudo isso sido uma pegadinha do destino? E agora? Esforçava-se para não adotar o papel de vítima, precisava assumir suas escolhas erradas, mas escolher o quê quando parecia não
haver opções?

Como acaba essa estória? Ainda não acabou. Ele está por aí, não o vejo há algum tempo. Soube por acaso que voltara a estudar martelaria, talvez para se atualizar e engordar o currículo. Orgulhoso que era, deve ter vergonha de sua situação.

Uma pena. Ele podia ter sido um bom martelo.

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

I wish I could cry,
As easy as the sky.
The tears don’t come as easily now.
They’re stuck inside my soul…

Angel, citada no livro O Demônio do Meio Dia - Uma Anatomia da Depressão, de Andrew Solomon

A não ser pelo fato de continuar respirando e andando por aí, eu já morri.

Morri para a vida que um dia eu achei que poderia viver, para os sonhos que gostava de sonhar, para as coisas que podia ter. Se depressão tem relação com a perda, essa nem sempre é um luto por uma morte na família nem uma perda física, real, mas uma perda ainda pior: a dos sonhos, dos objetivos, da perspectiva. A perda de si mesmo.

Passo pela avenida Sumaré num domingo pela manhã e vejo pessoas correndo, se exercitando, fazendo o velho jogging. E eu já morri pois não posso mais fazer isso. Minhas costas não permitem mais que dê três ou quatro passos em ritmo acelerado. A dor é paralisante. E, a bem da verdade, correr pra quê?

Vejo um grupo de adultos se divertindo com a brincadeira de Amigo Secreto. Todo ano é a mesma coisa: o pessoal monta um círculo de cadeiras e um por um vai ao centro fazer uma pseudo charada para que os demais descubram quem é o oculto que receberá seu presente. Enquanto todos riem, penso: é como rir da mesma piada vinte vezes, que bando de idiotas... Morri pois não consigo me divertir com quase mais nada. Ou melhor, não lembro de nada que me divirta de verdade.

Carros passam com homens de gravata ou mulheres bem arrumadas. Vão para o trabalho, lugar onde as pressões e possíveis humilhações são compensadas, bem ou mal, com o salário no final do mês. Morri pois não há mais como voltar à vida corporativa que levava. Eu não suportaria o enjaulamento num escritório sob ordens de algum chefe quase sempre um completo imbecil vaquinha de presépio e nem eles suportariam minha honestidade. Afinal, quem não sorri pelos corredores é mal visto.

Casais se abraçam num banco da praça. Em depressão nós nos trancamos dentro de nós mesmos, nos tornamos obcecados por nós mesmos e, após anos lutando contra sentimentos difusos de agonia e angústia, essa areia movediça engoliu minha parceira também. . Morri pois não consigo mais namorar, incapaz de sentir afeto. E ela, como não recebe, também já não dá mais.

Às vezes tentam me ajudar. Amigos e familiares, desconhecendo as armadilhas e caminhos tortuosos por onde se perdem as mentes deprimidas, parecem ter decorado as “cem frases que não se deve dizer a um deprimido” e as continuam repetindo, repetindo... Evito comentar qualquer coisa sobre meu verdadeiro estado de espírito porque, agnóstico, vão dizer que sofro assim porque não tenho Jesus no coração. Morri porque estou só, absolutamente só num mundo com mais de seis bilhões de pessoas.

Em filmes, o herói ou heroína vão ao inferno, passam o pior dos pesadelos, mas no final tudo acaba bem. Por mais que me esforce, não consigo ver final feliz em meu filme. Morri porque não vejo perspectiva, não vejo luz no fim do túnel, não vejo como não acabar muito, mas muito mal nessa estória.

O que é a vida se não se tem perspectiva positiva à frente?

terça-feira, 17 de novembro de 2009

ERA UMA VEZ O ZÉ

ÀS VEZES COGITO COMO É QUE TODOS OS QUE NÃO ESCREVEM,
NÃO COMPÕEM OU NÃO PINTAM CONSEGUEM ESCAPAR DA
LOUCURA, DA MELANCOLIA, DO PÂNICO
INERENTE À CONDIÇÃO HUMANA.
Graham Greene



Era uma vez o Zé.

Ele era meio perdido no mundo, na vida. Tinha amigos, comida farta, um lugar pra morar e sua vida podia ser considerada boa, melhor que de muitos, mas o Zé era meio triste.

O Zé era chamado de Zé porque não sabia seu nome verdadeiro, se é que tinha um. Então
ficou Zé mesmo, colocado por seus amigos que na época eram apenas estranhos desconhecidos.

Ele também não sabia quem ele era. Ou o quê ele era. Seus amigos, o pato, o macaco e o gato não sabiam como ele havia chegado ali e nunca tinham visto um animal como ele. Por isso o Zé era perdido.

O primeiro a se aproximar dele, quando ainda era pequeno, foi o macaco. Era o mais curioso e fez o que pode para ajudar o amigo, que precisava com urgência aprender a sobreviver naquelas bandas.

O macaco então tentou de todas as maneiras ensinar o Zé a balançar nos galhos das árvores,mas era impossível. Seus braços, ao invés de longos e fortes como o do macaco, tinham penas.

Apenas penas. Não dava pra segurar em coisa nenhuma. O Zé até tentou se segurar com os pés, mas aí ficava sempre de ponta cabeça... Foi um longo tempo de tentativas frustradas até que o gato, há tempos observando os dois, resolveu que continuar fazendo sempre as mesmas coisas esperando resultado diferente era bobagem e precisavam mudar de estratégia.

Quando o gato tentou ensinar o Zé a caçar, foi um desastre. O gato se esgueirava, rastejava e dava um bote certeiro mantendo o equilíbrio no ar com o próprio rabo, mas o Zé, todo desengonçado andando sobre seus dois pés nunca conseguiu seguir o gato. Quando o Zé tentava dar o bote como o gato sempre caía com o bico no chão.

Zé estava desolado. Não servia para balançar pelas árvores como o macaco nem para caçar como o gato. Para que ele existia, afinal?

Foi um tempo longo até que então o macaco e o gato perceberam que o Zé parecia com um
outro amigo deles, o pato. Correram até o lago, com o Zé sempre ficando para trás pois também não era bom corredor, chamaram o pato e ficaram ali analisando: bico, bico, penas pelo corpo, penas pelo corpo, dois pés sem pelos nem penas, dois pés sem pelos nem penas...

Bem, não eram idênticos mas já era alguma coisa.

Foi um momento feliz para o Zé. Havia finalmente encontrado outros como ele. Receberam-no com festa, música e um desfile pelo lago... A alegria acabou aí. O Zé quase morreu afogado.

Acharam que era falta de prática e o convenceram a persistir. Semanas, meses.

Ele tentou, tentou, mas não dava certo, não boiava como os demais. O clã dos patos convocou uma reunião e chamaram o pajé pato, acreditando que o Zé era um pato doente e por isso não conseguia passear pelo lago. Analisaram suas penas, seu tórax, suas
nadadeiras... Ôpa, o Zé não tinha nadadeiras. O pajé pato então diagnosticou: o Zé tinha uma deformidade de nascença, coisa genética, trazia do pai ou da mãe, vai saber. Não poderia passear no lago.

Com isso, Zé sentiu-se sozinho e perdido novamente. Não se sentia doente, mas a ala mais conservadora do clã dos patos já o olhava de modo estranho e os patos se afastavam.

Zé estava desolado. Não servia para balançar pelas árvores como o macaco, nem para caçar como o gato, nem para cruzar o lago como os patos. Para que ele existia, afinal?

Seus amigos patos mais próximos tentaram consolá-lo contando uma lenda que dizia haver patos diferentes morando do outro lado do imenso lago. Talvez eles pudessem verificar se isso era verdade e encontrar a turma do Zé. Mas se atravessar o lago nadando demorava dias mesmo para os patos mais rápidos, caminhando para dar a volta seria praticamente impossível, preocupava-se Zé.

Os patos pensaram em se juntar e atravessar o lago espremidos, com o Zé sobre eles,
mas desconfiavam que não conseguiriam manter a formação por tanto tempo.

O gato, coitado, até tentou levá-lo nas costas, mas para isso o Zé precisava segurar firme. Com as garras fincadas nas costas, tendo suportado por vários quilômetros, o gato desistiu.

O macaco também pensou poder levar Zé em um dos braços e balançar-se entre as árvores
com o outro, mas depois do terceiro ou quarto tombo, todo dolorido, resolveu parar antes de quebrar a cabeça dos dois.

Angustiado, Zé queria continuar, ir em frente, mas nem sabia pra onde. Bastaria ir beirando o lago? E se demorasse muito? Macaco e gato sabiam que, em termos de velocidade em solo, Zé era pra lá de lerdo. E não sabendo caçar, como ia se virar? Resolveram ir com ele.

Foi uma longa jornada. Dias quentes, dias chuvosos, noites frias, noites assustadoras: numa dessas surgiu a raposa, que não era lá muito amiga do macaco nem do gato e não conhecia o Zé. Vendo-o dormindo ali no chão, rodeou, rodeou, veio devagarzinho... Mas quando ia dar o bote o gato, sempre com sono leve, miou alto dando o alarme. A raposa titubeou e, assim, deu tempo ao macaco para que pegasse um pedaço de pau para defender o amigo.

A raposa, esperta diante do forte macaco prestes a lhe dar uma surra, desculpou-se. Queria apenas um pequeno pedaço daquela galinha.

Que galinha? O Zé é uma galinha? - se perguntavam. A raposa, dizendo-se experiente, reafirmava: o Zé era uma galinha. Fácil: penas pelo corpo, bico pontudo, pés sem pelos nem penas. Zé era uma galinha, ponto.

Já havia visto várias (e comido, mas isso ela não contou) do outro lado do lago e podia levá-los até lá. O gato e o macaco concordaram, mas avisaram que o Zé não seria o jantar da raposa, com o que ela achou melhor concordar também.

Eles caminharam muitos dias através dos bosques, da lama, sob sol forte e chuva fria até que, exaustos e famintos, avistaram o lugar onde morava a turma do Zé, as galinhas. De longe, bem longe, podiam ver algumas delas ciscando o chão.

Mesmo com os pés machucados de tanto caminhar, Zé ficou feliz de novo. Eles se pareciam mesmo.

Mas a raposa advertiu: deveriam ter cuidado com o macaco sem pelos que mandava naquela região. Ela já o havia visto e jurava que ele expelia fogo e fumaça, fazia o barulho de um trovão e, mesmo muito longe, os invasores caíam mortos. Teriam de ser silenciosos e esperar o anoitecer.

Já estava escuro, Lua alta no céu, quando esgueiraram-se até a cerca da casa das galinhas. Era de arame, não dava pra passar por ela, mas o macaco fez uma alavanca com aquele pedaço de pau e o Zé conseguiu passar por baixo.

Olhando pela janela, Zé espantou-se: havia muitas delas! Não se agüentava de emoção, queria entrar ali e abraçar a todos mas isso iria fazer uma confusão danada e acordar o macaco sem pelos. Então a raposa disse para o Zé entrar de mansinho, se misturar entre as galinhas, sentar num poleiro e ficar ali até a manhã seguinte.

Quando todos acordassem iriam vê-lo e então poderiam conversar e festejar sem levantar suspeitas. O macaco sem pelos nem iria notar uma galinha a mais, mas ela e seus amigos precisavam sair dali rapidinho, pois se ele os visse... Já era.

Foi uma despedida difícil, dolorosa, mas Zé havia sonhado com isso a vida toda. De qualquer modo, agora já sabia o caminho e poderia voltar para ver seus amigos quando tivesse saudade.

Assim, o macaco, o gato e a raposa acenaram e sumiram na escuridão da mata.

A manhã do dia seguinte foi um alvoroço. As galinhas cacarejavam sem parar assustadas com o estranho e não demorou muito até que o galo viesse em socorro. Ele olhou desconfiado para o Zé, olhou por um lado, por outro, com cara de bravo enquanto Zé jurava ser uma delas.

Então o galo pediu uma prova: que ele botasse um ovo. Um o quê?! Ah, aquilo em baixo delas – suspirou Zé. Nunca havia feito aquilo, mas podia tentar.

Infinitos e suados minutos depois, Zé já estava com dor de barriga e nada de ovo.
O galo até que foi legal e lhe deu uma semana de prazo. Se não botasse um ovo, teria de ir embora. A s galinhas dali botavam vários ovos por semana e aquelas que não o fizessem o macaco sem pelos levava para o Destruidor, uma coisa que ficava na casa ao lado em que a galinha era colocada por um lado e saía caldo do outro, mas nada de galinha. Brrrr...

Zé fez de tudo, até uns exercícios abdominais que as galinhas lhe ensinaram, mas nada. Algumas, vendo o esforço, compadeceram-se e se tornaram suas amigas. Uma delas chegou a oferecer um ovo para que Zé pudesse enganar o galo, mas não poderia viver assim para sempre.

Uma semana depois, Zé desistiu, desolado. Não servia para balançar pelas árvores como o macaco, nem para caçar como o gato, nem para cruzar o lago como os patos nem botar ovos como as galinhas. Para que ele existia, afinal?

O galo acabara de botá-lo para fora quando chegou o macaco sem pelos. Ao ver o Zé,
arregalou os olhos e, num movimento rápido, soltou o fogo e a fumaça com o som do trovão.

As penas do Zé se espalharam em frente ao galinheiro...

Então, era uma vez o Zé.

Ninguém nunca mais o viu. Uns dizem que ele não era uma galinha não, era uma águia, mas nem sei o que é isso e nem sei se ele ia gostar.

Afinal, pra que serve uma águia?

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

DEPRESSÃO E AUTO ENGANO - DILEMA DE TOSTINES



Soy um perdidor, I’m a loser baby, so why don’t You kill me?
Beck


Certa vez, descrevendo como se sentia “naqueles dias”, minha esposa disse que tudo parecia negro, sem futuro, sem esperança de que algo fosse melhorar, tinha vontade de jogar tudo pro alto e sumir, tudo era ruim demais e que era melhor ir dormir para que não decidisse fazer alguma loucura (nem perguntei que loucura seria...).

Pois bem, ela e milhões de mulheres lutam com a TPM em períodos mensais. Não disse a ela, mas luto contra a sensação que ela descreveu diariamente, sem intervalo.

Tem dias que torço para amanhecer chovendo muito, que falte energia elétrica e que a faxineira não venha– ótimo para continuar dormindo, ou melhor, deitado, pois não durmo mais que 6 horas por noite.

Às vezes, como sentia uma paciente da Maria Rita Kehl no livro O Tempo e o Cão, gostaria de estar preso ou internado num hospital, assim seria livre. Livre para continuar a não fazer nada e, preso ou internado, livre de cobranças – minhas próprias e dos outros – pois, afinal, não tinha como sair dali.

Quem disse que o Universo conspira a meu favor? Quem disse que “time is on my side”?

Às vezes eu mesmo tenho dúvidas: será que estou doente, será que sou doente ou o mundo e a vida são assim mesmo e sou apenas um desiludido, como uma criança a quem contam que Papai Noel não existe?

A desilusão em mim tornou-se profunda, talvez demais. Não acredito em quase mais nada. Aliás, praticamente retirei o verbo acreditar de meu vocabulário. Há tempos eu apenas sei ou não sei.

Livrei-me de montanhas de ilusão, de meias-verdades e puras mentiras simplesmente aceitas e não discutidas, enterrei crendices. Tornei-me cético, racional, lógico.

Ver o mundo e as coisas como elas realmente são. Isso me parecia bom e correto, até que me deparei com outra possibilidade. Ia (e ainda vou) comprar o livro Auto Engano, de Eduardo Gianetti, que aparentemente trata do assunto, ou seja, eliminar as verdades que contamos a nós mesmos para nos confortarmos, independente de serem ou não verdadeiras, mas lendo uma das resenhas disponíveis na web deparei-me com frases retiradas do livro que me fizeram pensar:

“...a sobriedade analítica e a acuidade psicológica do pensamento racional – tornam-nos irremediavelmente céticos e mesquinhos...”;


“...como seria a vida se estivéssemos livres de toda a ilusão?... Sem sonhos e sem ilusões, com uma objetividade exagerada o homem deixaria de acreditar em tudo o que não se pode compreender à luz da racionalidade”.

“Sem o auto-engano, em suma, que é o animal humano além de uma ‘besta sadia, cadáver adiado que procria’? A pílula do autoconhecimento e a ‘cura’ radical do auto-engano transformam o ser humano não em modelo de virtude e sabedoria, mas num monstro do qual todos os demais homens… fugiriam como de um espectro insuportável”.

Sou então deprimido porque destruí o auto-engano ou destruí o auto-engano e tornei-me deprimido?...


segunda-feira, 9 de novembro de 2009

A VIDA É BELA. É MESMO?...


"CHORAMOS AO NASCER PORQUE CHEGAMOS A ESTE IMENSO CENÁRIO DE DEMENTES".
Willian Shakespeare


Escrevo para perguntar a você leitor:

- quantas apresentações ppt você já recebeu com temas relacionados à beleza da vida?

- quantas frases e mensagens você já recebeu sobre esse mesmo tema?

- quantos livros conhece sobre esse mesmo assunto?

- quantas e quantas vezes você já leu ou ouviu sobre a esperança, sobre como é bom viver, etc., etc?

Aí então eu pergunto: se a vida é tão bela assim porque se esforçam tanto em afirmar e nos lembrar disso?

Minha teoria: são raríssimas as pessoas que conseguem encarar a vida como ela REALMENTE É. A grande maioria precisa dourar a pílula para poder seguir em frente.


quinta-feira, 5 de novembro de 2009

E VEM CHEGANDO O VERÃO...


MELANCOLIA É A FELICIDADE DE SER TRISTE.

Victor Hugo


Não preciso dizer, todo mundo sabe: vários estudos apontam os países com clima frio e dias cinzentos como os que mais apresentam casos de depressão e suicídios.

Muitos, e há especialistas entre estes, afirmam que o verão é a época ideal para curar mazelas, é a época em que todos ficam mais felizes. Quem diz isso deveria usar o diploma de psicologia ou psiquiatria como papel higiênico, não sabe o que está falando (assim como a maioria dos idiotas de verão) e nunca foi deprimido.


Eu já escrevi que depressão não combina com clima tropical, não combina com a trinca "samba, suor e cerveja".

Profissionais da área de saúde mental que me perdoem, mas tenho minha própria teoria: deprimidos tendem a piorar nessa época justamente porque não conseguem acompanhar a alegria irracional que cai sobre a imensa maioria. Não acompanham, não entendem, não conseguem fingir alegria e se sentem ainda mais excluídos, mais à margem, mais estranhos em qualquer roda social - isso quando participam de alguma.

Não conseguem seguir - ficando ainda mais distante - o modelo de comportamento socialmente exigido nessa época. E ninguém que tenha sido contaminado pela alegria de verão quer se aproximar de um sorumbático deprimido.

Nessa época somos como leprosos: quanto mais longe melhor. Assim não atrapalhamos a festividade geral.

Para os deprimidos, desculpem se me atrevo a falar pela "categoria", o calor derrete os miolos e por isso todos ficam ainda mais bobos-alegres.

Verão é pagode. Consegue imaginar um deprimido curtindo um pagode?

sexta-feira, 9 de outubro de 2009


"FALAR DE MIM É FÁCIL,
DIFÍCIL É SER EU"
- na traseira de uma Kombi.

A tão conhecida sabedoria popular muitas vezes não passa de bobagem situacional, circunstancial, mas de vez em quando acerta o alvo.

Essa poderia ser a frase-tema, o slogan dos deprimidos.

Em "A Vantagem do Tímido", a psicoterapeuta americana Martin Olsen Laney, baseada em estudos não lembro de onde, divide o mundo em 1/3 de introvertidos e 2/3 de extrovertidos. Aliás, aí está um viés do título: a questão não é ser tímido, mas introvertido. Talvez essa palavra não ficasse bem na capa, mas seria mais correta.
Acredito que depressão seja algo ligado muito mais aos introvertidos. Se isso for correto, então talvez possa daí tirar a conclusão de que essa é mais uma das imensas e variadas dificuldades dos deprimidos se relacionarem com as pessoas: a maioria delas - 2 em cada 3 - é extrovertida ou, em outras palavras já utilizadas aqui no Crônicas, formam a turma do Sol-samba-suor-e-cerveja.

Duvida? Escreva algo na internet que seja sério, profundo, que faça pensar e compare a audiência com sites de piadas, de "relacionamentos" ou de bobagens quaisquer. Seu post ficará às moscas binárias... A massa de internautas, em sua maioria, navega para se divertir.

Num mundo dominado por extrovertidos, os introvertidos parecem ter um "problema a ser tratado, curado", uma deficiência. NÃO É VERDADE.

Na escala de valores amplamente adotada atualmente, é verdade: ser retraído ou inibido não combina com a sociedade do exibicionismo, das ocas celebridades Bigbrotheanas, do pensamento superficial.

A dificuldade do introvertido é muito parecida (basicamente a mesma) do deprimido: este não parece ser o seu mundo, por isso aquela permanente sensação de ser o "patinho feio".

Deprimido/distímico que sou, me revoltei: não, não sou eu que tenho problema, nem você leitor, mas sim a atual estruturação de nossa sociedade com valores absolutamente distorcidos.

Quer um exemplos de valores distorcidos? Um médico que estudou por mais de vinte anos precisa trabalhar em três lugares diferentes e dar plantões noturnos para ter uma vidinha classemediana. Uma loira ignorante semianalfabeta só precisa mostrar a bunda para ficar milionária.

Um professor estadual, a despeito da extensa discussão sobre sua qualidade profissional, ganha salário quase igual ao de um gari de rua. O profissional que vai transmitir conhecimento ao seu filho ganha um infinitésimo do que ganha um cretino que canta "Créu".

Grande parte das mulheres, por questões financeiras, deixa de ir ao dentista mas bate cartão no salão de beleza, no dermatologista ou na clínica de implante de silicone.

Sério: somos nós que temos problemas?...


quarta-feira, 23 de setembro de 2009


"A maior felicidade é quando a pessoa sabe porque é que é infeliz."
Fiódor Dostoiévski

Hoje o dia está cinza, frio e úmido. Eu também.

Não é à toa que a taxa de depressão e suicídios em países não ensolarados como o nosso é mais alta. Sol, calor, samba-suor-e-cerveja não combinam com a introspecção típica dos deprimidos.

Sobre introspecção, estava viajando na maionese e lembrei de um post que fiz em outro blog meu. Mudei algumas coisas e reescrevi aqui.

Marina Colasanti, profundamente sábia, escreveu em “Eu sei, mas não devia”:

"A gente se acostuma a acordar de manhã, sobressaltado porque está na hora. A tomar café correndo porque está atrasado. A ler jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíches porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia”.

De certo modo, o deprimido (nós) é aquele que diz “pare o mundo que eu quero descer”, como cantava Sílvio Brito criticado por Raul Seixas.

O deprimido é aquele que percebe a cretinice das vidas que só tem sentido no consumo, no sucesso profissional ou financeiro. A vida urbana em que se trabalha cada vez mais para poder consumir cada vez mais e, para consumir cada vez mais, trabalha-se cada vez mais. Uma espécie de Trabalho de Sísifo moderno.

Depressão é aquele “pedido de tempo” ao perceber isso. E eu cansei disso. E cansei de estar cercado de imbecis que, na prepotência de sua ignorância, fazem parecer que só eu estou louco.

Aliás, é isso também que Maria Rita Kehl diz em seu livro O Tempo e o Cão, citado no post anterior. O deprimido incomoda, pois a sociedade não gosta de quem a critica e não segue a boiada acéfala e risonha.

Eu pensava em como poderia escapar dessa ciranda tristemente viciosa que a cada dia se tornava mais pesada e sem saída.Foi quando li sobre a estréia de “Into the Wild” (Na Natureza Selvagem, aqui), baseado na trajetória de Christopher McCandless rumo ao Alasca em busca (ou fuga) de... Bem... McCandless morreu e só há interpretações possivelmente contaminadas sobre sua escapada.

Pouco depois li sobre Jonathan Dunham, um ex-professor canadense que largou tudo e está cruzando o planeta a pé acompanhado de seu burro, chamado Judas. Motivo, nem ele mesmo sabe ao certo. Jornais ao longo de sua rota noticiaram que ele estava caminhando pela paz mundial, para estabelecer um recorde ou para divulgar a palavra de Deus.

"Eles sempre encontram algo para dizer", disse Dunham sobre os repórteres que buscam conhecê-lo.

Lendo isso, lembrei-me da multidão seguindo Forrest Gump enquanto corria. Ele apenas corria.

Dias depois, entre minhas séries enlatadas preferidas, vi Jason Gideon (Mandy Patinkin) abandonar a liderança intelectual da equipe de agentes do FBI em “Criminal Minds”, deixando apenas uma carta explicando sobre sua dificuldade em ainda acreditar que as coisas podem dar certo no final.

E espantei-me com Sara Sidle, em pleno breakdown emocional diante de tantas tragédias, despedindo-se de Grisson em “CSI”. A personagem também deixa uma carta dizendo que, apesar de ter feito de tudo para ficar, precisava de um tempo para “repensar”.

São, todos esses, personagens perdidos em seus caminhos e em seu sentido de existência.

Teria sido tudo sintoma de atenção seletiva?

Será que é possível "desacostumar" de tudo e recomeçar em outro lugar?

“- ...E o que você vai fazer quando chegar ao Alasca?" – pergunta o divertido malandro vivido de maneira carismática por Vince Vaughn em “Na Natureza Selvagem”.

“- Apenas viver, cara, viver...”, responde McCandless.



quarta-feira, 19 de agosto de 2009

O Tempo e o Cão


"Talvez eu não esteja deprimido...
Os outros é que estão artificialmente felizes".

eu mesmo


Acabo de ler "O Tempo e o Cão", da
psicanalista Maria Rita Kehl. Quer dizer, acabo não, pois já emprestei para minha terapeuta.

Não é um livro muito "fácil" para quem, como eu, tem pouquíssima ou nenhuma bagagem Freudiana, Lacaniana, Benjaminiana e umas outras. Em algumas partes achei que a autora se perdeu em academicismos sobre correntes filosóficas, História, a vida de Baudelaire...

Mas quando volta a tratar do assunto Depressão, parece que me observou e
escreveu sobre mim - e sobre todos que vem visitar o Crônicas, pois temos muito em comum.

Maria Rita, situando a depressão como uma questão "social", afirma que - e isso eu sentia mas não sabia traduzir em palavras - deprimidos são pessoas deslocadas de seu tempo, indo muitas vezes na contramão: numa sociedade em que todos buscam a felicidade, o prazer, o gozo, o deprimido é aquele que atrapalha porque não consegue "ser alegre e feliz" como os demais.

"...
esta é a única sociedade em que as pessoas ficam infelizes por se sentirem culpadas de não estarem tão felizes quando deveriam. Se alguém está triste, o que é natural na vida, essa cobrança social duplica a infelicidade. O depressivo é sintoma social porque ele é aquele que não consegue aceitar o convite tão sedutor para estar sempre de bem com a vida".

Vale a pena.


segunda-feira, 16 de março de 2009

RÚEMÁI?


Alguns enxergam até certo charme ou poesia numa pessoa deprimida, mas isso quando a criatura deprimida é famosa, poderosa ou simplesmente rica.

Ludwig Van Beethoven, Abraham Lincoln, Santos-Dumont, Winston Churchill, Kurt Cobain, Alanis Morissette, Virginia Woolf...

Alguns, no entanto, não são famosos, não fazem nada relevante e, muitas vezes, não são ou deixam de ser produtivos. São só uns manés anônimos, chatos e tristes. Meu caso.

A medicação tirou-me do fundo do poço, a terapia deu-me certo equilíbrio. Mas pararam por aí. E não farão milagres.

Tenho mania de emprestar frases ou versos de músicas. Pois bem, como canta David Bowie em Something in the Air, "...Ive danced with you too long...".

É isso. Foi tempo demais, anos a fio dançando ao som da depressão. A correria da vida em uma megalópole rouba grande parte de sua atenção e você percebe sim que ela o acompanha, mas não tem tempo de refletir. Sai correndo pela manhã, volta cansado à noite. E assim ela vai te levando para cada vez mais fundo, mais fundo...

Apesar de Hollywood insistir nos finais felizes, ninguém sai impune depois de tanto tempo deprimido.

Você jamais volta a ser como era antes dela apoderar-se de sua alma. Na melhor das hipóteses, assim como após um grave acidente automobilístico, sobrevive mas talvez perca um membro, carregará consigo as cicatrizes, as marcas, algumas dores crônicas para o resto da vida.

Tanto tempo depressivo e auto-anulado, não havia mais "baixa auto-estima", mas sim apenas "baixa-estima" ou "ainda-mais-baixa-estima", pois a palavra "auto" poderia dar um sentido de algo elevado a quem ouve. Agora não sei mais quem sou eu de verdade.

É comum entre deprimidos e principalmente distímicos achar que a gente não ESTÁ assim, mas que SOMOS assim. Sou mesmo o cara deprimido de há tantos anos? Quem eu era antes disso?

O mundo parece ter ficado mais grave, já não rio tanto. Mas me acostumei com o que me tornei. Não que eu goste mas, como disse Jack Nicholson naquele filme, "...e se melhor for impossível?...".




quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

AREIA MOVEDIÇA


"...Não adianta chamar...
Quando alguém está perdido, procurando se encontrar...".
Rita Lee - Doce vampiro


Nenhuma doença é boa.

Ok, agora fui idiota, nem precisava escrever isso, mas a Depresão é especialmente cruel.

Se você é diabético e vive fazendo hemodiálise todo mundo entende e se compadece.

Se é tuberculoso e tosse as tripas o dia todo, todos se compadecem.

Para qualquer doença crônica e seu tratamento há sempre aqueles que entendem e se compadecem.

Com deprimidos é diferente. Mesmo em plena era da informação há muito preconceito e incompreensão.

Ha tempos descobriram que depressão é um problema químico no cérebro - uma doença como outra qualquer - mas ser um "paciente psiquiátrico" ainda assusta e afasta a maioria.

Sua falta de ânimo é vista como corpo mole, sua visão pessimista do futuro como fraqueza de espírito, por seus lapsos de memória o acusam de viver no mundo da Lua (quem dera), seu distanciamento das pessoas o faz ser visto como um esquisito, sua incapacidade de ser carinhoso é mal entendida como desamor...

Até as pessoas mais próximas, aquelas únicas que deveriam ao menos saber de seu "problema" e com as quais você contava, o ironizam:- Ai, como vc anda chato. Parece o Hardy Har Har quando dizia "oh, dor, oh céu, oh vida, oh azar". Credo!

E parece que quanto mais você se debate tentando "sair dessa", como nas clássicas cenas de areia movediça dos filmes B, mais você afunda.

Estar deprimido é andar por becos escuros numa noite chuvosa, como um personagem desesperançado de "Invisivel People", de Will Eisner, ao som das doloridas "Canções para Cortar os Pulsos" de Tom Waits.

Poucos irão entender.

sábado, 7 de fevereiro de 2009

ESPELHOS AMBULANTES


“O inferno é acordar todos os dias sem saber para que existe”.
Marv, personagem de Sin City




Não tenho medo de morrer.

Tenho medo de viver pela metade. Viver como um zumbi, apenas existir. Se sofrer um acidente, melhor morrer de vez que ficar aleijado, paraplégico, tetraplégico, cego...

Outra coisa que me dá medo são os moradores de rua, os sem teto das metrópoles.

Tenho o hábito de levar os cachorros passear em praças próximas e em uma delas vários moradores de rua passam seus dias ali, descansando das longas caminhadas pela cidade atrás de comida nas lixeiras, pegando ou pedindo restos nos fundos de restaurantes, em portas de açougues, padarias, pastelarias e supermercados.

Quando olho para eles não penso como a maioria, que rapidamente os associam a bêbados, pinguços, loucos inúteis, vagabundos. Sim, eles podem ser tudo isso e mais, mas pelo menos em alguns casos algo muito grave os levou a essa vida desgraçada.

Um deles certa vez me perguntou em que eu trabalhava. Como estava desempregado, resolvi dizer que eu era publicitário. Por uma estranha coincidência do destino – ou uma mentira apenas para continuar o papo – ele me disse que fora também publicitário numa época distante. Trabalhava montando anúncios de jornais. Era, em verdade, um tipógrafo. Entendia bastante de sistemas de impressão, diagramação de páginas e lembrava com ar saudosista da correria que era quando se aproximava o fechamento da edição.

Por vezes era difícil entender direito o que dizia, ora por sua pronúncia totalmente enrolada, ora pelo bafo.

A partir desse dia, toda vez que vejo um deles estórias de vida passam pela minha mente. Talvez aquele ali, sujo, fedido, maltrapilho cambaleante dizendo frases desconexas um dia possa ter sido um executivo engravatado trabalhando numa grande empresa, dinheiro aplicado, carrão e que, por motivos diversos, perdera o emprego.

A dificuldade em arranjar trabalho ou de começar algum negócio para sustentar a família foi agravando sua situação. Já não pagava as contas habituais, estava difícil manter a despensa com alimentos e produtos de limpeza. Como “dificuldades financeiras” está entre os principais motivos de brigas e separações de casais, imagino que deva ter saído de casa ou sua esposa o tenha abandonado. Filhos, se tivesse, teriam ficado com a mãe.

Seus pais haviam morrido, os parentes estavam muito distantes e há tempos perdera contato com eles, de seus antigos amigos tinha vergonha por sua situação deplorável.

Humilhado, abandonado, amargurado, não demorou muito para o demônio da depressão se apoderar de sua alma. Sem recursos psicológicos e físicos para enfrentar esse caos ou buscar ajuda profissional, num comportamento clichê, porque extremamente comum, parou no bar mais próximo e deu seus primeiros fatídicos goles numa tentativa desesperada de apagar o sofrimento.

Ficou na rua. Não tinha mais nada, apenas algumas poucas roupas numa mala velha.

Num dado momento pode ter-se deparado com uma alma caridosa que o encaminhou à igreja. Mas lá prometiam glória no pós vida e isso não resolvia seus problemas. Noutra, a alegre e exaltada cantoria e os insistentes pedidos de colaboração em dinheiro faziam-no sentir ainda mais miserável.


A solução era mesmo o copo. Ao menos temporariamente sentia-se livre da cruz que era continuar vivendo aquele pesadelo.

Poderia sim ter sido diferente, mas pode ter sido assim mesmo.
Isso pode, com toda a certeza, acontecer a qualquer um, por mais rico, erudito e educado que tenha sido.


Disso tudo tenho medo. Dos sem teto, dos moradores de rua.

Vejo neles uma possibilidade para mim.

domingo, 25 de janeiro de 2009

ERA O QUE FALTAVA...






"Nada é mais humilhante do que ver os tolos vencer naquilo em que fracassamos."

Gustave Flaubert

E então ele tomou consciência de que era um fracassado, aquele tal loser que se ouve nos filmes. Havia fracassado como profissional, como marido, como pai, filho e espírito santo, como esportista, escritor, ilustrador e noutras que já nem se lembrava.

Com isso – e por isso – descobriu também estar passando por um TDM – transtorno depressivo maior. Nem remédio e terapia conseguiam dissipar as nuvens negras que o acompanhavam. Aliás, o remédio que seu psiquiatra havia receitado proporcionava uma série de efeitos colaterais, mas ele apresentou apenas um: diminuição da libido ou, em palavras mais honestas, dificuldade de ereção.

Profissionalmente fracassado, não conseguia colaborar com o orçamento doméstico. Tentando dar menos despesas para compensar sua sensação de ser um fardo pesado, aproveitou-se de sua dupla hérnia de disco para tirar habilitação especial para deficientes.

Amparado pela Lei, iria requerer isenção de pagamento de IPVA, ficaria livre do rodízio e, o melhor, teria isenção de IPI e ICMS na aquisição de veículo “especial” (cambio automático torna o carro especial?...). Isso, claro, quando ou se tivesse grana para comprar um carro.

E agora, como se não bastasse, alguém o lembrava de que precisava iniciar os exames regulares de próstata.

Era a humilhação que faltava: fracassado, deprimido, brocha, aleijado e agora teria de deixar alguém enfiar o dedo em seu traseiro.

Haja antidepressivo... E vaselina.

ON THE ROAD

"When I’m on the road I’m indestructible. No one can stop me. But they try…”.
- Ben, em Fulltrottle, o game cult da LucasArts.

Ao contrário de Ben, não se sentia nada indestrutível. Aliás, se você jogou esse clássico viu que o motoqueiro também não era.

Dias desses noticiaram que o
trânsito nas estradas aumentou proporcionalmente mais que nas grandes cidades
. Justo agora... – pensou.

Já há algum tempo, três dias por semana pegava a estrada a caminho da fábrica e voltando pra casa. Eram 220 km por dia a 120 / 130 km/h em meio a histéricos apressados, mongos sonolentos, fileiras de ônibus fretados, caminhões de diversos tamanhos, todos eles em diferentes velocidades e com motoristas em diversos níveis de habilidade e irracionalidade ao volante.

Eram 24 vezes por mês ou, sob um ponto de vista mórbido, 24 oportunidades de morrer em um único mês. 288 possibilidades no ano.
Ele sabia que não devia pensar assim, mas não conseguia evitar esse tipo de pensamento. Quando saia da marginal e vislumbrava a estrada, imediatamente surgia a pergunta: será que é hoje?...

He was a friend of mine
And he was a friend of mine
He died on the road
A thousand miles from home
And he never harmed no one
He was a friend of mine
And he was a friend of mine
…”

Bem... Ainda não havia sido dessa vez.