Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
Vivi, estudei, amei e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Trechos de “Tabacaria”, Fernando Pessoa.
Dia desses recebi por e-mail, de novo, aquela tal estorinha da reunião numa multinacional em que o chefão diz que ninguém é insubstituível e alguém solta um “E Beethoven?”.
Segue-se então a costumeira lição de moral que tenta nos fazer acreditar que, pelo contrário, nós somos sim insubstituíveis.
Eu até acho legais algumas dessas estorinhas de auto-ajuda, de motivação mas, em geral, elas carregam consigo dois problemas: para pessoas com a auto estima sub zero como eu, que já tentou praticamente de tudo pra “dar certo” na vida (seja lá o que isso for) e não conseguiu, elas caem na questão da auto ajuda que não ajuda quem realmente precisa (veja este post mais antigo). Outra coisa é que, invariavelmente, ou elas fogem à realidade ou, pior, mentem descaradamente.
Uma das que mentem descaradamente é aquela da águia que se retira no alto da montanha, arranca as próprias penas e até o bico para depois meio que renascer, renovada, para enfrentar os desafios da vida. É preciso lembrar às pessoas, ao menos àquelas com idade mental adulta, de que pássaros assim não existem na natureza. E a Fênix é apenas um ser mitológico...
Outras, apenas derrapam. É o caso dessa do insubstituível.
Derrapa em primeiro lugar quando diz que “...Cabe aos líderes de sua organização mudar o olhar sobre a equipe e voltar seus esforços em descobrir os pontos fortes de cada membro. Fazer brilhar o talento de cada um em prol do sucesso de seu projeto”.
Isso significa que eu tenho o tal talento mas é o outro – os líderes, o chefe... - que precisa me descobrir e me incentivar... Ora, saída pela esquerda, não?! Se não tenho sucesso não é porque sou um zero à esquerda, é culpa dos outros que ainda não me descobriram. Brilhante...
Depois, dizer que somos únicos é... O óbvio ululante! Claro que somos todos únicos, assim como todo mundo. Isso é uma coisa. Outra é ter, de fato, um talento único.
De uma vez por todas, NÃO, não somos todos Beethovens, Einsteins, Garrinchas ou Zacarias. Muitos de nós não tem talento especial algum ou, que seja, talento razoavelmente destacante e aproveitável numa empresa.
Muitos de nós, a imensa maioria, somos apenas peões. De macacão ou de gravata, mas peões. Somos sim substituíveis. Não fosse assim o sistema todo, a economia, a vida em sociedade não funcionava. Lembrando que se você não é substituível também não pode ser promovido, certo?! ;-)
Mas ninguém, com ou sem talento, gosta desse tipo de choque de realidade. Auto-enganar-se parece ser o hobby oficial e natural do ser humano.