sábado, 7 de fevereiro de 2009

ESPELHOS AMBULANTES


“O inferno é acordar todos os dias sem saber para que existe”.
Marv, personagem de Sin City




Não tenho medo de morrer.

Tenho medo de viver pela metade. Viver como um zumbi, apenas existir. Se sofrer um acidente, melhor morrer de vez que ficar aleijado, paraplégico, tetraplégico, cego...

Outra coisa que me dá medo são os moradores de rua, os sem teto das metrópoles.

Tenho o hábito de levar os cachorros passear em praças próximas e em uma delas vários moradores de rua passam seus dias ali, descansando das longas caminhadas pela cidade atrás de comida nas lixeiras, pegando ou pedindo restos nos fundos de restaurantes, em portas de açougues, padarias, pastelarias e supermercados.

Quando olho para eles não penso como a maioria, que rapidamente os associam a bêbados, pinguços, loucos inúteis, vagabundos. Sim, eles podem ser tudo isso e mais, mas pelo menos em alguns casos algo muito grave os levou a essa vida desgraçada.

Um deles certa vez me perguntou em que eu trabalhava. Como estava desempregado, resolvi dizer que eu era publicitário. Por uma estranha coincidência do destino – ou uma mentira apenas para continuar o papo – ele me disse que fora também publicitário numa época distante. Trabalhava montando anúncios de jornais. Era, em verdade, um tipógrafo. Entendia bastante de sistemas de impressão, diagramação de páginas e lembrava com ar saudosista da correria que era quando se aproximava o fechamento da edição.

Por vezes era difícil entender direito o que dizia, ora por sua pronúncia totalmente enrolada, ora pelo bafo.

A partir desse dia, toda vez que vejo um deles estórias de vida passam pela minha mente. Talvez aquele ali, sujo, fedido, maltrapilho cambaleante dizendo frases desconexas um dia possa ter sido um executivo engravatado trabalhando numa grande empresa, dinheiro aplicado, carrão e que, por motivos diversos, perdera o emprego.

A dificuldade em arranjar trabalho ou de começar algum negócio para sustentar a família foi agravando sua situação. Já não pagava as contas habituais, estava difícil manter a despensa com alimentos e produtos de limpeza. Como “dificuldades financeiras” está entre os principais motivos de brigas e separações de casais, imagino que deva ter saído de casa ou sua esposa o tenha abandonado. Filhos, se tivesse, teriam ficado com a mãe.

Seus pais haviam morrido, os parentes estavam muito distantes e há tempos perdera contato com eles, de seus antigos amigos tinha vergonha por sua situação deplorável.

Humilhado, abandonado, amargurado, não demorou muito para o demônio da depressão se apoderar de sua alma. Sem recursos psicológicos e físicos para enfrentar esse caos ou buscar ajuda profissional, num comportamento clichê, porque extremamente comum, parou no bar mais próximo e deu seus primeiros fatídicos goles numa tentativa desesperada de apagar o sofrimento.

Ficou na rua. Não tinha mais nada, apenas algumas poucas roupas numa mala velha.

Num dado momento pode ter-se deparado com uma alma caridosa que o encaminhou à igreja. Mas lá prometiam glória no pós vida e isso não resolvia seus problemas. Noutra, a alegre e exaltada cantoria e os insistentes pedidos de colaboração em dinheiro faziam-no sentir ainda mais miserável.


A solução era mesmo o copo. Ao menos temporariamente sentia-se livre da cruz que era continuar vivendo aquele pesadelo.

Poderia sim ter sido diferente, mas pode ter sido assim mesmo.
Isso pode, com toda a certeza, acontecer a qualquer um, por mais rico, erudito e educado que tenha sido.


Disso tudo tenho medo. Dos sem teto, dos moradores de rua.

Vejo neles uma possibilidade para mim.