quinta-feira, 26 de novembro de 2009

O MARTELO QUE QUERIA SER... MARTELO!



HÁ MUITAS FRASES ENGRANDECEDORAS SOBRE O FRACASSO. TODOS OS QUE AS PROFEREM SÃO VENCEDORES E ASSIM É FÁCIL, É COMO DIZER QUE DINHEIRO NÃO É TUDO QUANDO SE TEM O SUFICIENTE. ONDE ESTÃO AS FRASES DOS FRACASSADOS SOBRE O FRACASSO?
Eu mesmo



Eu conheci o Martelo.

Não, você não leu errado nem eu digitei errado. Martelo mesmo, com “t”.

O conheci ainda pequeno. Seu grande ídolo era Mjolnir, o martelo mágico de Thor, deus do trovão. Invencível, indestrutível, quantas batalhas, quantas aventuras Mjolnir vivia nos gibis que Martelo devorava nas tardes de outono.

Quando não imitávamos as aventuras do martelo mágico brincávamos quase sempre de
oficina. Esse era o seu sonho, um tanto quanto mais pé no chão.

Ao final de sua adolescência tornara-se um autêntico martelo unha 30 onças, com cabeça de aço e cabo de Madeira de Lei envernizada. Ele tinha um quase indisfarçável orgulho disso.

Era então hora de deixar os gibis de lado e ganhar dinheiro, procurar um emprego de... Martelo, oras! O que mais?!

Fez uma lista de marcenarias e oficinas, lustrou-se todo e foi à luta.

Não havia vaga na primeira marcenaria. Na segunda ficaram com seu currículo e disseram que entrariam em contato caso surgisse uma posição. Nas oficinas que visitou até conseguiu ser entrevistado numa e noutra, mas nada de emprego.

Isso se repetiu várias vezes. Muitas vezes.

Começou a ficar desanimado e assustado pois precisava, como todo mundo, ganhar seu próprio sustento. Sem falar na delicada situação de estar sem trabalho, principalmente em reuniões sociais quando lhe perguntavam “o que anda fazendo?”, “onde está trabalhando?”.

Apelou para carpintarias, mas também não teve sucesso.

Estava cansado da rotina de ler os classificados nos jornais, de mandar currículos pelo correio, por e-mail e de se cadastrar em todos os sites de empregos quando surgiu uma oportunidade e o chamaram. Era uma vaga de chave de fenda. Espantado e assustado com o convite, foi aconselhar-se com amigos e parentes.

Concordaram que não era o ideal, mas ele não podia perseguir um ideal para sempre, tinha de se ajustar. Não precisa ser fatalista, falavam. Só por que nascera martelo não significava que não poderia aprender outras atividades. Na pior das hipóteses, ao invés de especialista seria um generalista com experiências variadas, tão procurados à época.

Ponderou. Não queria mais aquela rotina de desempregado e aceitou.

No início seus companheiros de marcenaria davam-lhe um desconto por seus trabalhos meio mal feitos. Afinal, era seu primeiro emprego. Mas depois de um tempo foi ficando claro que aquele serviço não era para ele. Seus colegas lançavam olhares estranhos e não demorou muito a ouvir conversas de corredor sobre como era incompetente. Pediu demissão e voltou à luta por seu lugar no mundo das marcenarias.

Mas os tempos, como sempre aliás, eram difíceis. Havia a concorrência com os martelos chineses, sempre trabalhando por salários irrisórios, e novas tecnologias que substituíam parte dos trabalhos nas oficinas.

Ele tentou, tentou, tentou até que apareceu uma vaga de serrote.
Caracas! Nem eu acreditaria se não tivesse acompanhado sua estória de perto.

Disseram-lhe que com o tempo ele se adaptaria, não precisava fazer um trabalho “fino”. Bastava separar os pedaços de madeira na marretada mesmo. Como da vez anterior, aceitou para sair da bacia das almas.

A novela se repetiu. Tudo bem no início, os amigos eram complacentes, mas logo, como era um trabalho em cadeia, seu desempenho muito aquém do necessário atrapalhava o resultado final. Voltou a se sentir incompetente, opinião da qual seus colegas, agora ex, partilhavam. Isolou-se no canto da marcenaria fazendo seu trabalho quase que se desculpando. O chefe já não lhe passava muito trabalho. Foi, como dizem, posto na geladeira.

O estigma de incompetente instalou-se em sua alma. Já acreditava, e a realidade parecia lhe mostrar isso, que não servia para nada em lugar nenhum. Ficou estressado e o resultado de seu trabalho, que não era bom, ficou pior.
Não tinha mais condições de continuar. Pediu demissão.

Sem emprego novamente e acreditando que não tinha utilidade nesse mundo, caiu em depressão. Acho que já estava deprimido desde lá de trás, mas agora havia caído a última gota no copo d’água, havia sido dado o último sopro na bexiga, havia...

Chega de metáforas. O fato é que, depois de tanto tempo e já com bem mais idade de que quando saiu à procura de emprego pela primeira vez, percebeu que estava meio velho para o mercado de trabalho e não tinha experiência na profissão para a qual nascera.

Teria tudo isso sido uma pegadinha do destino? E agora? Esforçava-se para não adotar o papel de vítima, precisava assumir suas escolhas erradas, mas escolher o quê quando parecia não
haver opções?

Como acaba essa estória? Ainda não acabou. Ele está por aí, não o vejo há algum tempo. Soube por acaso que voltara a estudar martelaria, talvez para se atualizar e engordar o currículo. Orgulhoso que era, deve ter vergonha de sua situação.

Uma pena. Ele podia ter sido um bom martelo.

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

I wish I could cry,
As easy as the sky.
The tears don’t come as easily now.
They’re stuck inside my soul…

Angel, citada no livro O Demônio do Meio Dia - Uma Anatomia da Depressão, de Andrew Solomon

A não ser pelo fato de continuar respirando e andando por aí, eu já morri.

Morri para a vida que um dia eu achei que poderia viver, para os sonhos que gostava de sonhar, para as coisas que podia ter. Se depressão tem relação com a perda, essa nem sempre é um luto por uma morte na família nem uma perda física, real, mas uma perda ainda pior: a dos sonhos, dos objetivos, da perspectiva. A perda de si mesmo.

Passo pela avenida Sumaré num domingo pela manhã e vejo pessoas correndo, se exercitando, fazendo o velho jogging. E eu já morri pois não posso mais fazer isso. Minhas costas não permitem mais que dê três ou quatro passos em ritmo acelerado. A dor é paralisante. E, a bem da verdade, correr pra quê?

Vejo um grupo de adultos se divertindo com a brincadeira de Amigo Secreto. Todo ano é a mesma coisa: o pessoal monta um círculo de cadeiras e um por um vai ao centro fazer uma pseudo charada para que os demais descubram quem é o oculto que receberá seu presente. Enquanto todos riem, penso: é como rir da mesma piada vinte vezes, que bando de idiotas... Morri pois não consigo me divertir com quase mais nada. Ou melhor, não lembro de nada que me divirta de verdade.

Carros passam com homens de gravata ou mulheres bem arrumadas. Vão para o trabalho, lugar onde as pressões e possíveis humilhações são compensadas, bem ou mal, com o salário no final do mês. Morri pois não há mais como voltar à vida corporativa que levava. Eu não suportaria o enjaulamento num escritório sob ordens de algum chefe quase sempre um completo imbecil vaquinha de presépio e nem eles suportariam minha honestidade. Afinal, quem não sorri pelos corredores é mal visto.

Casais se abraçam num banco da praça. Em depressão nós nos trancamos dentro de nós mesmos, nos tornamos obcecados por nós mesmos e, após anos lutando contra sentimentos difusos de agonia e angústia, essa areia movediça engoliu minha parceira também. . Morri pois não consigo mais namorar, incapaz de sentir afeto. E ela, como não recebe, também já não dá mais.

Às vezes tentam me ajudar. Amigos e familiares, desconhecendo as armadilhas e caminhos tortuosos por onde se perdem as mentes deprimidas, parecem ter decorado as “cem frases que não se deve dizer a um deprimido” e as continuam repetindo, repetindo... Evito comentar qualquer coisa sobre meu verdadeiro estado de espírito porque, agnóstico, vão dizer que sofro assim porque não tenho Jesus no coração. Morri porque estou só, absolutamente só num mundo com mais de seis bilhões de pessoas.

Em filmes, o herói ou heroína vão ao inferno, passam o pior dos pesadelos, mas no final tudo acaba bem. Por mais que me esforce, não consigo ver final feliz em meu filme. Morri porque não vejo perspectiva, não vejo luz no fim do túnel, não vejo como não acabar muito, mas muito mal nessa estória.

O que é a vida se não se tem perspectiva positiva à frente?