terça-feira, 17 de novembro de 2009

ERA UMA VEZ O ZÉ

ÀS VEZES COGITO COMO É QUE TODOS OS QUE NÃO ESCREVEM,
NÃO COMPÕEM OU NÃO PINTAM CONSEGUEM ESCAPAR DA
LOUCURA, DA MELANCOLIA, DO PÂNICO
INERENTE À CONDIÇÃO HUMANA.
Graham Greene



Era uma vez o Zé.

Ele era meio perdido no mundo, na vida. Tinha amigos, comida farta, um lugar pra morar e sua vida podia ser considerada boa, melhor que de muitos, mas o Zé era meio triste.

O Zé era chamado de Zé porque não sabia seu nome verdadeiro, se é que tinha um. Então
ficou Zé mesmo, colocado por seus amigos que na época eram apenas estranhos desconhecidos.

Ele também não sabia quem ele era. Ou o quê ele era. Seus amigos, o pato, o macaco e o gato não sabiam como ele havia chegado ali e nunca tinham visto um animal como ele. Por isso o Zé era perdido.

O primeiro a se aproximar dele, quando ainda era pequeno, foi o macaco. Era o mais curioso e fez o que pode para ajudar o amigo, que precisava com urgência aprender a sobreviver naquelas bandas.

O macaco então tentou de todas as maneiras ensinar o Zé a balançar nos galhos das árvores,mas era impossível. Seus braços, ao invés de longos e fortes como o do macaco, tinham penas.

Apenas penas. Não dava pra segurar em coisa nenhuma. O Zé até tentou se segurar com os pés, mas aí ficava sempre de ponta cabeça... Foi um longo tempo de tentativas frustradas até que o gato, há tempos observando os dois, resolveu que continuar fazendo sempre as mesmas coisas esperando resultado diferente era bobagem e precisavam mudar de estratégia.

Quando o gato tentou ensinar o Zé a caçar, foi um desastre. O gato se esgueirava, rastejava e dava um bote certeiro mantendo o equilíbrio no ar com o próprio rabo, mas o Zé, todo desengonçado andando sobre seus dois pés nunca conseguiu seguir o gato. Quando o Zé tentava dar o bote como o gato sempre caía com o bico no chão.

Zé estava desolado. Não servia para balançar pelas árvores como o macaco nem para caçar como o gato. Para que ele existia, afinal?

Foi um tempo longo até que então o macaco e o gato perceberam que o Zé parecia com um
outro amigo deles, o pato. Correram até o lago, com o Zé sempre ficando para trás pois também não era bom corredor, chamaram o pato e ficaram ali analisando: bico, bico, penas pelo corpo, penas pelo corpo, dois pés sem pelos nem penas, dois pés sem pelos nem penas...

Bem, não eram idênticos mas já era alguma coisa.

Foi um momento feliz para o Zé. Havia finalmente encontrado outros como ele. Receberam-no com festa, música e um desfile pelo lago... A alegria acabou aí. O Zé quase morreu afogado.

Acharam que era falta de prática e o convenceram a persistir. Semanas, meses.

Ele tentou, tentou, mas não dava certo, não boiava como os demais. O clã dos patos convocou uma reunião e chamaram o pajé pato, acreditando que o Zé era um pato doente e por isso não conseguia passear pelo lago. Analisaram suas penas, seu tórax, suas
nadadeiras... Ôpa, o Zé não tinha nadadeiras. O pajé pato então diagnosticou: o Zé tinha uma deformidade de nascença, coisa genética, trazia do pai ou da mãe, vai saber. Não poderia passear no lago.

Com isso, Zé sentiu-se sozinho e perdido novamente. Não se sentia doente, mas a ala mais conservadora do clã dos patos já o olhava de modo estranho e os patos se afastavam.

Zé estava desolado. Não servia para balançar pelas árvores como o macaco, nem para caçar como o gato, nem para cruzar o lago como os patos. Para que ele existia, afinal?

Seus amigos patos mais próximos tentaram consolá-lo contando uma lenda que dizia haver patos diferentes morando do outro lado do imenso lago. Talvez eles pudessem verificar se isso era verdade e encontrar a turma do Zé. Mas se atravessar o lago nadando demorava dias mesmo para os patos mais rápidos, caminhando para dar a volta seria praticamente impossível, preocupava-se Zé.

Os patos pensaram em se juntar e atravessar o lago espremidos, com o Zé sobre eles,
mas desconfiavam que não conseguiriam manter a formação por tanto tempo.

O gato, coitado, até tentou levá-lo nas costas, mas para isso o Zé precisava segurar firme. Com as garras fincadas nas costas, tendo suportado por vários quilômetros, o gato desistiu.

O macaco também pensou poder levar Zé em um dos braços e balançar-se entre as árvores
com o outro, mas depois do terceiro ou quarto tombo, todo dolorido, resolveu parar antes de quebrar a cabeça dos dois.

Angustiado, Zé queria continuar, ir em frente, mas nem sabia pra onde. Bastaria ir beirando o lago? E se demorasse muito? Macaco e gato sabiam que, em termos de velocidade em solo, Zé era pra lá de lerdo. E não sabendo caçar, como ia se virar? Resolveram ir com ele.

Foi uma longa jornada. Dias quentes, dias chuvosos, noites frias, noites assustadoras: numa dessas surgiu a raposa, que não era lá muito amiga do macaco nem do gato e não conhecia o Zé. Vendo-o dormindo ali no chão, rodeou, rodeou, veio devagarzinho... Mas quando ia dar o bote o gato, sempre com sono leve, miou alto dando o alarme. A raposa titubeou e, assim, deu tempo ao macaco para que pegasse um pedaço de pau para defender o amigo.

A raposa, esperta diante do forte macaco prestes a lhe dar uma surra, desculpou-se. Queria apenas um pequeno pedaço daquela galinha.

Que galinha? O Zé é uma galinha? - se perguntavam. A raposa, dizendo-se experiente, reafirmava: o Zé era uma galinha. Fácil: penas pelo corpo, bico pontudo, pés sem pelos nem penas. Zé era uma galinha, ponto.

Já havia visto várias (e comido, mas isso ela não contou) do outro lado do lago e podia levá-los até lá. O gato e o macaco concordaram, mas avisaram que o Zé não seria o jantar da raposa, com o que ela achou melhor concordar também.

Eles caminharam muitos dias através dos bosques, da lama, sob sol forte e chuva fria até que, exaustos e famintos, avistaram o lugar onde morava a turma do Zé, as galinhas. De longe, bem longe, podiam ver algumas delas ciscando o chão.

Mesmo com os pés machucados de tanto caminhar, Zé ficou feliz de novo. Eles se pareciam mesmo.

Mas a raposa advertiu: deveriam ter cuidado com o macaco sem pelos que mandava naquela região. Ela já o havia visto e jurava que ele expelia fogo e fumaça, fazia o barulho de um trovão e, mesmo muito longe, os invasores caíam mortos. Teriam de ser silenciosos e esperar o anoitecer.

Já estava escuro, Lua alta no céu, quando esgueiraram-se até a cerca da casa das galinhas. Era de arame, não dava pra passar por ela, mas o macaco fez uma alavanca com aquele pedaço de pau e o Zé conseguiu passar por baixo.

Olhando pela janela, Zé espantou-se: havia muitas delas! Não se agüentava de emoção, queria entrar ali e abraçar a todos mas isso iria fazer uma confusão danada e acordar o macaco sem pelos. Então a raposa disse para o Zé entrar de mansinho, se misturar entre as galinhas, sentar num poleiro e ficar ali até a manhã seguinte.

Quando todos acordassem iriam vê-lo e então poderiam conversar e festejar sem levantar suspeitas. O macaco sem pelos nem iria notar uma galinha a mais, mas ela e seus amigos precisavam sair dali rapidinho, pois se ele os visse... Já era.

Foi uma despedida difícil, dolorosa, mas Zé havia sonhado com isso a vida toda. De qualquer modo, agora já sabia o caminho e poderia voltar para ver seus amigos quando tivesse saudade.

Assim, o macaco, o gato e a raposa acenaram e sumiram na escuridão da mata.

A manhã do dia seguinte foi um alvoroço. As galinhas cacarejavam sem parar assustadas com o estranho e não demorou muito até que o galo viesse em socorro. Ele olhou desconfiado para o Zé, olhou por um lado, por outro, com cara de bravo enquanto Zé jurava ser uma delas.

Então o galo pediu uma prova: que ele botasse um ovo. Um o quê?! Ah, aquilo em baixo delas – suspirou Zé. Nunca havia feito aquilo, mas podia tentar.

Infinitos e suados minutos depois, Zé já estava com dor de barriga e nada de ovo.
O galo até que foi legal e lhe deu uma semana de prazo. Se não botasse um ovo, teria de ir embora. A s galinhas dali botavam vários ovos por semana e aquelas que não o fizessem o macaco sem pelos levava para o Destruidor, uma coisa que ficava na casa ao lado em que a galinha era colocada por um lado e saía caldo do outro, mas nada de galinha. Brrrr...

Zé fez de tudo, até uns exercícios abdominais que as galinhas lhe ensinaram, mas nada. Algumas, vendo o esforço, compadeceram-se e se tornaram suas amigas. Uma delas chegou a oferecer um ovo para que Zé pudesse enganar o galo, mas não poderia viver assim para sempre.

Uma semana depois, Zé desistiu, desolado. Não servia para balançar pelas árvores como o macaco, nem para caçar como o gato, nem para cruzar o lago como os patos nem botar ovos como as galinhas. Para que ele existia, afinal?

O galo acabara de botá-lo para fora quando chegou o macaco sem pelos. Ao ver o Zé,
arregalou os olhos e, num movimento rápido, soltou o fogo e a fumaça com o som do trovão.

As penas do Zé se espalharam em frente ao galinheiro...

Então, era uma vez o Zé.

Ninguém nunca mais o viu. Uns dizem que ele não era uma galinha não, era uma águia, mas nem sei o que é isso e nem sei se ele ia gostar.

Afinal, pra que serve uma águia?