segunda-feira, 14 de junho de 2010

SONHOS E DÚVIDAS

"Só sabemos com exatidão quando sabemos pouco; à medida que vamos adquirindo conhecimentos, instala-se a dúvida."
Goethe


Um interesse quase nulo sobre o mundo exterior, mas uma intensa e lancinante vivência interior, uma terrível dificuldade em simplesmente viver, profunda insegurança ontológica, um flerte com todos os tipos de crenças sem, no entanto, acreditar em nenhuma delas, falta de identidade e referências numa sociedade em que valores metafísicos estão em pleno declínio.

Posso apostar que você leitor se identifica com o parágrafo acima. Eu me identifico e, assim, me identifico com Fernando Pessoa e Kafka, segundo artigo sobre o "Dicionário de Fernando Pessoa e do Modernismo Portugês" publicado no Caderno2 do Estadão de ontem. Não sei sobre você, mas a mim falta "apenas" o talento desses dois, talento esse que invejo e busco nas profundezas de meu ser.

Mas será mesmo que tenho algum talento? Se sim, onde terá ido parar que não consigo colocá-lo em prática?

Na caixa de hobbies, ou seja, atividades que dão prazer mas não dão dinheiro? Na repartição de sonhos, ou melhor, coisas fluidas que jamais se materializarão? Na seção de protelados, ou, coisas que deixei pra depois, não desenvolvi e definharam?

Onde está esse talento que tanto procuro? Onde está aquilo que nem sei se existe e que ninguém vê?

Diversos textos nos impelem a buscar e seguir nossos sonhos. Eu mesmo tive por muito tempo - e ainda quero acreditar nela - como diretriz uma frase de Joseph Campbell - "follow your bliss" - mas não estarei eu numa cruzada quixotesca em busca de algo que existe apenas em minha imaginação?

Até que ponto devemos correr em busca de nossos sonhos enquanto, como cantava Cazuza, "o tempo não pára" e a vida vai passando, passando?...

Não será essa minha busca por um suposto talento um artifício que criei para mim mesmo a fim de fugir ao "sistema", ou seja, parar de procurar emprego que, aliás, há tempos é uma tarefa inútil e só me deixa ainda mais deprimido por não resultar em nada?

Existem as mais diversas estórias e causos sobre aqueles que teimaram, lutaram e até remaram contra a maré atrás de sonhos e, finalmente, triunfaram. Muito bonito, mas há um detalhe: conhecemos as estórias dos que tiveram sucesso em suas empreitadas simplesmente porque são ou ficaram famosos com isso.

Não conhecemos as estórias - e o mundo faz questão de escondê-las de nós - daqueles que lutaram a vida toda, se esforçaram ao máximo, tiveram até prejuízos materiais, pessoais e sociais em suas buscas por seus sonhos e, antes de alcançá-los ou materializá-los, seus tempos acabaram, morreram pobres, anônimos, sozinhos.

Sabendo que as estórias de fracassos são a maioria, caso contrário a pirâmide social teria de ser invertida, outra amargurante questão se coloca: vale mesmo a pena lutar sempre, desistir jamais? Ou essa é apenas mais uma frase bonitinha pseudo-motivadora que alegra as cabeças menos-pensantes?

É mesmo certo passar poeticamente a vida atrás de um sonho ou assumirmos pragmaticamente nossa existência e, não visualizando outra saída no horizonte, arrumar um emprego qualquer apenas para pagar as contas e ir sobrevivendo?

E o risco de, no ir sobrevivendo, nos acostumarmos a isso e vida passar, passar, até que seja tarde demais?

Um comentário:

  1. Permita-me iniciar meu comentário por citar um trecho do seu texto que me chamou a atenção:

    "Não conhecemos as estórias - e o mundo faz questão de escondê-las de nós - daqueles que lutaram a vida toda, se esforçaram ao máximo, tiveram até prejuízos materiais, pessoais e sociais em suas buscas por seus sonhos e, antes de alcançá-los ou materializá-los, seus tempos acabaram, morreram pobres, anônimos, sozinhos."

    Isto me fez lembrar de Vincent van Gogh, o famoso pintor holandês, cujas obras hoje valem mais que o PIB de várias nações. A grosso modo, além do fato de hoje ser um pintor famoso, as pessoas em geral lembrarão dele também como um louco que cortou uma de suas orelhas e se matou - só. Uma pesquisa detalhada sobre este homem mostrará uma realidade, ouso dizer, constrangedora: era tido como um pintor medíocre - ou ruim mesmo - por seus contemporâneos e só não viveu na mais completa miséria por se empenhar em seus quadros (vendeu somente um em vida) graças ao subsídio prestado por seu irmão Theo. Deu um tiro no próprio peito, suponho, amaldiçoando sua vida e sua arte para, a partir da geração seguinte, seu nome e suas obras passarem a ser valorizadas. Situação paradoxal, não?
    Pois é, nossa sociedade é assim. Na grande maioria dos casos deixa de prestigiar um autor de algo notável enquanto esse é vivo para, depois de sua morte, como sanguessuga, tirar proveito se, ainda assim, for de interesse. É o que penso. Quantos outros Bachs, Vivaldis, Mozarts e Beethovens existiram e morreram com suas obras igualmente perdidas? Quantos outros van Goghs caíram no mesmo esquecimento?
    Meu caro, talvez tenhamos nosso talento reconhecido em vida, talvez depois de nossa morte, talvez nunca. Seja como for. Enquanto ainda sentirmos certa medida de prazer naquilo que gostamos de fazer, creio que vale a pena continuar.

    Um forte abraço!

    Ian Gedik

    P.S.: recomendo que leia um livro intitulado 'Cartas a Theo', de Vincent van Gogh, pois nos dá uma visão interessante do dia-a-dia do hoje famoso pintor.

    ResponderExcluir