sexta-feira, 4 de junho de 2010

SUB ZERO

Não sou nada.

Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
Vivi, estudei, amei e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.

Trechos de “Tabacaria”, Fernando Pessoa.


Dia desses recebi por e-mail, de novo, aquela tal estorinha da reunião numa multinacional em que o chefão diz que ninguém é insubstituível e alguém solta um “E Beethoven?”.

Segue-se então a costumeira lição de moral que tenta nos fazer acreditar que, pelo contrário, nós somos sim insubstituíveis.

Eu até acho legais algumas dessas estorinhas de auto-ajuda, de motivação mas, em geral, elas carregam consigo dois problemas: para pessoas com a auto estima sub zero como eu, que já tentou praticamente de tudo pra “dar certo” na vida (seja lá o que isso for) e não conseguiu, elas caem na questão da auto ajuda que não ajuda quem realmente precisa (veja este post mais antigo). Outra coisa é que, invariavelmente, ou elas fogem à realidade ou, pior, mentem descaradamente.

Uma das que mentem descaradamente é aquela da águia que se retira no alto da montanha, arranca as próprias penas e até o bico para depois meio que renascer, renovada, para enfrentar os desafios da vida. É preciso lembrar às pessoas, ao menos àquelas com idade mental adulta, de que pássaros assim não existem na natureza. E a Fênix é apenas um ser mitológico...

Outras, apenas derrapam. É o caso dessa do insubstituível.

Derrapa em primeiro lugar quando diz que “...Cabe aos líderes de sua organização mudar o olhar sobre a equipe e voltar seus esforços em descobrir os pontos fortes de cada membro. Fazer brilhar o talento de cada um em prol do sucesso de seu projeto”.

Isso significa que eu tenho o tal talento mas é o outro – os líderes, o chefe... - que precisa me descobrir e me incentivar... Ora, saída pela esquerda, não?! Se não tenho sucesso não é porque sou um zero à esquerda, é culpa dos outros que ainda não me descobriram. Brilhante...

Depois, dizer que somos únicos é... O óbvio ululante! Claro que somos todos únicos, assim como todo mundo. Isso é uma coisa. Outra é ter, de fato, um talento único.

De uma vez por todas, NÃO, não somos todos Beethovens, Einsteins, Garrinchas ou Zacarias. Muitos de nós não tem talento especial algum ou, que seja, talento razoavelmente destacante e aproveitável numa empresa.

Muitos de nós, a imensa maioria, somos apenas peões. De macacão ou de gravata, mas peões. Somos sim substituíveis. Não fosse assim o sistema todo, a economia, a vida em sociedade não funcionava. Lembrando que se você não é substituível também não pode ser promovido, certo?!  ;-)

Mas ninguém, com ou sem talento, gosta desse tipo de choque de realidade. Auto-enganar-se parece ser o hobby oficial e natural do ser humano.

7 comentários:

  1. É como na lei da selva, só os fortes sobrevivem, os fracos são devorados para no final virar esterco, não deveria ser assim, mas esta é a realidade da vida, vida essa que ainda luto para manter.

    ResponderExcluir
  2. Adorei seu blog. Há sete anos convivo com depressao e há seis meses acompanho suas escritas, no site. Gostaria de parabenizá-lo pelos textos coerentes, pelas dicas de livros e citações de autores e músicos. Gostei de ver a citação de "hurt", de Trent Reznor. "Never is a promise", de Fiona Apple, também é 'deprimente'.

    ResponderExcluir
  3. Auto-ajuda só serve para quem não precisa de ajuda! Questionadores por natureza jamais aceitam certas coisas sem franzir a testa!

    ResponderExcluir
  4. Olá Superman.
    Deixe-me fazer uma rápida observação quanto ao seu comentário: a questão da lei do mais forte é uma corruptela das afirmações de Darwin. Não foi isso que ele disse ou quis dizer (mas infelizmente foi isso que todo mundo resolveu entender). Na verdade, Darwin falava da sobrevivência do "ser melhor ou mais bem adaptado", ou seja, daqueles que tinham algum recurso que lhes conferia alguma vantagem na luta pela sobrevivência. Isso não estava necessariamente relacionado à força, vide camaleões e baratas. Fosse simplesmente força os dinossauros gigantes ainda dominariam o planeta, mas o suposto cataclismo que os dizimou não foi suficiente para matar todas as fracas e minúsculas baratas.
    Indo nessa linha de raciocício, deprimidos são pessoas, de modo geral, que encontram sérias dificuldades de se adaptarem ao mundo à sua volta e isso pode, em algumas situações, tornar difícil o sucesso profissoinal, por exemplo.
    Deprimidos, sejam eles poderosos dinossauros ou minúsculas baratas, tem dificuldade de sobreviver (se relacionar com o mundo exterior) onde quer que estejam.

    ResponderExcluir
  5. meu bom o seu blog ^^ (que alias eu começei a seguir...) apesar no nome ter me dado a impressão que vc só iria ficar reclamando da vida lol mas vc naum faz isso *-* seus textos são mto bons mesmo.

    e eu concordo totalmente... Não entendo essas pessoas que se acham tão "especiais" e "insubstituíveis" poraí, não mesmo.

    Sofro de depressão a um bom tempo também, apesar de eu ser meio nova ainda, tenho 17 anos (fico me sentido peixe pequeno lol parece q todos os blogueiros são adultos), imagino se minha depressão começou a uns 2 anos, 3... não sei... enfim, só começei a me tratar a um mês, com antidepressivos e tals

    De qualquer jeito, boa sorte para você o/. E continue escrevendo *-* gostei de vdd do seu blog.

    ResponderExcluir
  6. Aqui vai minha auto declaração:
    Sou uma pessoa auto didata e costumo sempre buscar respostas naquilo que já foi escrito por alguém, mesmo sabendo que será apenas algo emprestado de outrem. Minha auto estima é variável, depende do momento, nem por isso me considero insubstituível numa sociedade exclusivamente materialista...tudo é substituível num mundo de objetos, inclusive o “objeto humano”.
    Nessa minha auto busca passei por muita literatura cientifica, filosófica, teológica mas realmente as denominadas de auto ajuda são hilárias, ninguém pode em sã consciência acreditar que a experiência de outros pode resolver os seus autos problemas , melhor ler poemas como esse de Fernando Pessoa ou simplesmente buscar nos livros de história as experiências alheias.
    Autoconhecimento é a resposta para encontrar talento em si mesmo, ninguém pode lhe dar qualquer talento, nós já nascemos com ele. Qualquer pessoa inclusive o Fernando sabe o que lhe é inerente, basta acreditar no EU verdadeiro e o auto engano desaparece.
    A grama do seu jardim não está preocupada com as flores belas ao seu lado, ela simplesmente é grama (continuo martelando na sua história do Martelo), mas você sempre acha que a grama do jardim do vizinho sempre é mais verde...
    ” se você gostaria que a grama ficasse mais verde, não há necessidade de olhar para o outro lado da cerca; você pode tornar a grama mais verde de seu lado da cerca!
    É uma coisa tão simples ... Apenas quando você olha para os outros lugares, e os gramados parecem tão bonitos - exceto o seu”

    ResponderExcluir
  7. Olá novamente, inestimável Dr. House. É um prazer dividir esse espaço com você.
    E vc tem razão, tenho sérios problemas em relação ao meu jardim. Talvez eu conseguisse vê-lo mais verde se mais alguém também o visse. Sei que não devo dar ao outro esse poder sobre mim e alguns dirão a velha e batida frase "se nem você acredita em vc, quem acreditará?", mas o fato é que depois de alguns anos acreditando totalmente sozinho em seu próprio jardim a gente começa a se questionar: não estarei eu tendo ilusões a respeito desse meu jardim? E se eu passar a vida toda acreditando nele em vão?

    ResponderExcluir